Jardins do Éden

Christian Cravo

O Haiti como um Desafio ao Pensamento

Meu contato com Christian Cravo deu-se pela primeira vez em Porto Príncipe, Haiti, em agosto de 2008, quando estava naquele país fazendo a pesquisa de minha tese de doutoramento em Antropologia Social no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fomos juntos ao Lakou de Nan Soukri, nas proximidades da cidade de Gonaives. Ele ia movido pela busca de imagens dos rituais, em verdade, de uma imagem específica. Eu em busca de elementos para a minha pesquisa sobre as relações entre o vodu e o mundo social haitiano de uma maneira mais geral. Ambos íamos movidos por um forte sentimento. E ainda que esta intuição fosse sentida por cada um de nós de maneira absolutamente diferente e orientada por perspectivas muito distintas, em ambos havia a paixão pelo confronto com a alteridade. 

Voava pela primeira vez para o Haiti, em novembro de 2006, quando li “El Reino deste Mundo”, uma das mais brilhantes obras do realismo fantástico de Alejo Carpentier, cuja narrativa transcorre na época do processo de independência do Haiti. No prefácio da obra, Carpentier conta que visitou o Haiti em 1943 e nesta visita pode conviver com aquilo que chamou de “Realidade Maravilhosa”, que não era apenas um traço específico daquela ilha caribenha, mas de toda a América Latina, com suas histórias fantásticas sobre a Áurea Cidade de Manoa e a Fonte da Juventude Eterna.

Ao referir-se a uma “Realidade Maravilhosa”, Carpentier nos conduz um pouco a um mundo onde a convivência com imagens fantásticas de espíritos que possuem as pessoas conversam com tantas outras, homens que se transformam em animais, pessoas que podem voar durante a noite e mortos que retornam de suas tumbas são fatos tão naturais quanto o preço diário da sobrevivência ou o ato simples fazer compras do dia no mercado. 

Não se trata de falar de “superstições populares”, mas de negar essa idéia de “superstição” e mergulhar neste mundo onde o “real” e o “maravilhoso” convivem, se não de maneira harmônica, vivem numa relação de complementaridade.

Tudo isso poderia fazer parecer que o Haiti é uma espécie de império do exotismo, fazendo-nos esquecer que a vida das pessoas transcorre num país ocupado por forças das Nações Unidas, vitimado por terríveis problemas econômicos e instabilidade política. E este talvez seja o fio condutor de qualquer narrativa sobre o Haiti, compreender que naquele mundo social o ordinário e aquilo que de nosso ponto de vista possa parecer extraordinário (ou “estranho”) convivem de maneira harmônica. Aliás, ouso dizer, talvez o limite entre estas instâncias, o “ordinário” e o “maravilhoso”, seja demasiado tênue para que possamos assumi-lo como uma divisão absoluta entre dois termos. 

A propósito, trata-se exatamente disto, de perceber como estes sinais, que podem ser por vezes estigmas, rebatem na vida cotidiana e nas muitas interpretações de estrangeiros e dos próprios haitianos sobre si mesmos e sobre o seu país. Quando nos deparamos com o fato de que o vodu constitui-se em objeto de profundas discussões que envolvem juristas e sociólogos, homens comuns e literatos e está presente nos filmes e nas canções, ao mesmo tempo em que, como sugere Malinowski, não seja possível dizer exista uma crença ou idéia sobre os fatos da vida, mas que existam crenças e idéias pessoais, podemos ver que há um fundo comum, um conjunto de representações que são partilhadas por todos aqueles que vivem naquele mundo social.

Talvez seja esse o ponto, as imagens quase que surreais invocadas sobre o vodu parecem ser o complemento “maravilhoso” de um mundo real povoado de dificuldades e carências, superadas no dia a dia, forjando uma espécie de desafio à compreensão e imaginação sociológicas, como sugeria a antropóloga brasileira Lygia Sigaud. Este “maravilhoso”, no entanto, nada tem de irreal. Ele é vivido com a mesma intensidade das atividades corriqueiras de um dia comum. Aliás, na maior parte das vezes ele pode nem ser mencionado, mas está ali, como uma sombra que nos acompanha e vigia.

Foi perseguindo esta sombra, este estranho objeto que parece emular de maneira completa todas as práticas sociais no Haiti, que se deu a convergência entre as nossas perspectivas, a minha e de Christian: a tentativa de captar a beleza e a riqueza do universo religioso haitiano por lentes muito diferentes, a minha, a da antropologia social e cultural e a dele, do artista, do esteta. Na verdade, foi exatamente o desejo de iluminar as sombras que pairam sobre aquele sofrido país caribenho que nos permitiu enxergar a beleza das coisas aqui retratadas. 

José Renato Baptista 

Nascido em 1974, de mãe dinamarquesa e de pai brasileiro, Christian Cravo foi criado num ambiente artístico na cidade de Salvador, Bahia. Foi introduzido no mundo das artes desde uma idade tenra. No entanto, só começou suas experiências com a técnica fotográfica aos onze anos de idade, enquanto morava na Dinamarca, lugar onde passou toda sua adolescência.
Em 1991, aos dezessete anos, voltou ao Brasil para conhecer melhor e experimentar a vida no ambiente artístico criado pelo seu avô e pai. Passou 18 meses viajando pelo nordeste Brasileiro, num momento de fundamental importancia para sua posterior percepção como fotografo. Em 1993, interrompeu suas andanças para cumprir o serviço militar nas forças armadas dinamarquesas. Com vinte e dois anos, voltou ao Brasil, decidido que este era o caminho proposto para a sua vida.
Ao longo dos últimos vinte e cinco anos, Christian teve seu trabalho exposto em importantes instituições, como o Museu de Arte Moderna da Bahia, Ministério da Cultura em Brasília, Instituto Tomie Ohtake,  Museu Afro Brasil e no Museu da Fotografia em Fortaleza. Galerias que tiveram suas mostras incluem a Throckmorton Fine Art em Nova York, a Billedhusets Galeri em Copenhague, na  Dan Galeria em São Paulo e na Paulo Darzé Galeria de Arte em Salvador. Participou de mostras coletivas de grande importancia na Witkin Gallery em Nova York, na S.F. Camera Works Gallery em São Francisco, na bienal Fotofest em Houston e no Palais de Tokyo em Paris.
Recebeu prêmios do Museu de Arte Moderna da Bahia, e do Mother Jones International Fund for Documentary Photography. Além de bolsas de pesquisa da Fundação Vitae e da Fundação John Simon Guggenheim para sua pesquisa sobre a água e a fé. Em 2016 foi premiado pela APCA (associação Paulista de Críticos de Arte) pela melhor exposição fotográfica de 2015.
Já foi indicado para prêmios internacionais como o Paul Huff (Holanda 2007) e o Prix Pictet (Suiça/Reino Unido, 2008 e 2015 e 2016). Seu primeiro livro “Irredentos” foi publicado em 2000 e em 2005 seu segundo livro “Roma noire, ville métisse” foi publicado em Paris, por Autrement. Outros livros de sua autoria são: “Nos Jardins do Éden” 2010, “Exú Iluminado” 2012, “Christian Cravo”, editado pela prestigiada editora Cosac & Naify em 2014, “Mariana” e “Luz e sombra”, ambos em 2016, e, em 2018 “Filhos de Gandhy” editados pelo seu própio selo Estúdio Apuena ltda. Atualmente vive em Salvador, onde preside o instituto Mario Cravo Neto, criado com o objetivo de promover o conhecimento e a compreensão do legado do artista, incluindo a diversidade de técnicas, meios e assuntos que ele explorou ao longo da vida, assim como o propósito de promover e difundir a arte fotográfica como expressão artística e universal. É casado com Adriana e pai de três filhas; Sophia, Stella e Helena.

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