Infra

Richard Mosse

O DEMÔNIO QUE VOCÊ CONHECE (The Devil You Know)

Resistência e sublime nas fotografias de Richard Mosse

Como se captura o inferno na terra? Se você for Richard Mosse, por meio do desenvolvimento de uma estética sublime da vida na morte.

Mosse realizou uma série de viagens à região leste da República Democrática do Congo – um imenso campo de massacre que ceifou mais de cinco milhões de vidas desde 1998 –, para retratar uma das mais cruéis zonas de conflito do mundo em tons de rosa-choque, vermelho vivo e fúcsia. A paleta do artista, espetacular e impactante, embebe o que seriam imagens convencionais de crianças-soldados, caveiras humanas e campos de batalha cobertos de relva em um tóxico brilho neón. É como se o sangue, o suor e as lágrimas do Congo estivessem vermelhecidos pelas luzes da Times Square.

As fotografias de Mosse e seu novo vídeo de seis canais, “O Enclave”, criados para o Pavilhão Irlandês da 55a Bienal de Veneza, retratam um sonho febril de violência tornado terrivelmente real. O material escolhido por Mosse, um filme fora de linha originalmente utilizado pela vigilância militar, registra um invisível espectro de luz infravermelha, transformando os verdes e marrons naturais da zona de guerra em uma abrasadora psicodelia sensorial. As imagens de Mosse também revelam um medo igualmente fantasmagórico (infravermelho?) espreitando entre as onduladas savanas e as vilas de telhados de palha – um medo que costuma escapar à fotografia mais convencional. Podemos dizer, nos termos do filósofo político e estético do século XVIII Edmund Burke, que estas deslumbrantes imagens caracterizam o próprio “terror” – esse elemento horripilante que constitui “em todos os casos (…) o princípio fundamental do sublime”.

A partir da elogiadíssima série “Infra” (2011), primeiro conjunto de obras de Mosse a utilizar o filme infravermelho, os retratos e paisagens em tons intensos de roxo e magenta têm questionado o papel documental padrão da fotografia, assim como a política cultural pós-moderna que insistentemente balcaniza questões de autenticidade, exotismo e representação. O fato de Mosse, um irlandês branco, ter escolhido realçar “artificialmente” imagens que retratam a Guerra Mundial da África (o conflito envolveu nove nações por mais de doze anos) sempre causa desconfiança a respeito de quem exatamente pode contar a urgente história do genocídio no continente. Mesmo assim, Mosse, um representante corajoso do humanismo do século XXI, mantém-se mais do que disposto ao desafio. Se suas imagens habitam o seu violáceo artifício como flamingos rosados habitam sua plumagem, elas o fazem principalmente para espetacularizar a cumplicidade entre determinados interlocutores do primeiro mundo (Mosse), seus temas cruciais do terceiro mundo (massacre no Congo), e os espectadores do mundo cada vez mais passivos (eu, você e todos que conhecemos).

Além de inquietarem um público que convive com imagens de realidades sofridas, porém distantes, mostradas pela incessante cobertura jornalística, as fotografias e vídeos de Mosse também remetem ao que o artista tem chamado de “limites da percepção”. Suas fotografias manchadas de vermelho afirmam o seguinte: o que se vê quando um fotógrafo expõe a natureza geralmente abstrata da guerra prolongada às lentes da câmera não é jamais o factual ou verdadeiro – é apenas uma impressão matizada de luz. Ou, como o artista explica em um comentário sobre suas fotografias publicado nas páginas do The New Yorker: “O conflito no Congo – um conflito tribal, territorial, nacional e internacional – é um palimpsesto de diversas guerras que se sobrepõem de forma obscura e incomum. Quis tentar unir estas duas coisas bem diferentes, o filme infravermelho de vigilância militar e o sofrimento do Congo, escovar a contrapelo”.

A flagrante estetização da guerra e seus efeitos no mundo real proposta por Mosse não trata simplesmente de subverter as convenções das coberturas da mídia de massa, mas também de desafiar o modo como as grandes narrativas contemporâneas continuam sendo construídas. Em vez de retransmitir uma história enlatada sobre a experiência essencialmente inalcançável do Outro, Mosse seguiu um caminho mais ousado. Depois de tomar a decisão, como diria o crítico cultural esloveno Slavoj Žižek, de acolher seus sintomas como intruso ocidental na África, o artista optou por utilizar a tecnologia da fotografia manchada em benefício de sua arte. O Outro, um construto social ocidental liberal prejudicado terminalmente, já não se aplica neste ato brutalmente aberto de confrontar o substancial que este Sujeito realiza. Não surpreende que os seres humanos retratados nas fotos e no filme de Mosse encarem diretamente o público através da lente da câmera. Ao fazerem isso, eles não apenas deixam o espectador consciente dos complexos riscos em jogo com o enquadramento do olhar do autor, como também revelam seu próprio escrutínio ferino – como vítimas, perpetradores ou meras testemunhas de uma vasta litania de crimes indescritíveis.

Nas palavras do crítico Terry Eagleton, a teoria cultural – da qual boa parte da arte contemporânea do fim do século XX simplesmente constitui uma subdivisão – prometeu atacar os problemas fundamentais das pessoas, mas fracassou: “Tem sido acanhada com respeito à moralidade e à metafísica, embaraçada quando se trata de amor, biologia, religião e revolução, grandemente silenciosa sobre o mal, reticente a respeito da morte e do sofrimento, dogmática sobre essenciais, universais e fundamentos, e superficial a respeito de verdade, objetividade e ação desinteressada” . Basta substituirmos o termo “teoria cultural” por “arte” e teremos a descrição de um universo paralelo de coisas debilitadas, anódinas e claramente comerciais que costumam ocupar as galerias e museus contemporâneos de Nova Iorque a Joanesburgo. Impressiona o fato de ter demorado tanto até que um consenso crítico e artístico emergente chamasse esta produção visual saturada de teoria, academicamente sancionada e essencialmente paroquial do que ela realmente é: arte como escapismo mecânico.

Enquanto uma série de artistas visuais ainda vai atrás da reluzente arte comercial e de temas politicamente corretos, como a “possibilidade emancipatória da práxis de Jay-Z”, artistas como Richard Mosse permanecem comprometidos com as chamadas “grandes narrativas” – histórias fundamentalmente difíceis sobre como as pessoas comuns lidam com a dor, o sofrimento, a violência e a crise ao redor do mundo. Nem relativizante nem engajada no sentido tradicional, a obra deste artista tem sido pioneira em uma ousada abordagem universal que busca o Sentido com S maiúsculo. Com marcas abertamente estéticas que apontam questões vitais e que ao mesmo tempo problematizam a fotografia, as imagens deste irlandês utilizam-se das falsificações do meio (o matiz rosado do filme anticamuflagem) para visualizar o que permaneceria irrepresentável à câmera (as paisagens de aparência pastoral que na verdade escondem sangue e ossos pelo chão).

As fotografias de Mosse formam uma proposta visual realizada de modo sublime para afastar os demônios politicamente corretos que conhecemos. Mas o código de cores de emergência dessas imagens leva ainda outra mensagem: maiores, os demônios da vida real aguardam, e precisam desesperadamente ser encarados.

CHRISTIAN VIVEROS-FAUNÉ

Brooklyn, Nova Iorque

(Tradução: Juliana Steil)



Richard Mosse (Kilkenny, 1980) vive e trabalha entre Nova Iorque e a Irlanda. Teve seu trabalho recentemente apresentado em exposições individuais no Museu de Arte Moderna de São Francisco, na Galeria Nacional de Arte de Washington DC, na Galeria de Arte Barbican de Londres e na Galeria Nacional de Victoria em Melbourne. Mosse também participou de exposições coletivas realizadas nas seguintes instituições, entre outras: Museu de Belas Artes de Basileia; Instituto de Arte Contemporânea de Boston; Instituto de Arte de Minneapolis; Academia das Artes de Berlim; Salão de Arte de Hamburgo; Museu de Arte Moderna de Frankfurt; Museu Nacional de Arte Moderna e Contemporânea de Seul; Museu de Arte de Denver; Festival Internacional de Cinema Salaam Kivu de Goma; Museu Victoria e Albert de Londres; Galeria Tretyakov de Moscou. Recebeu o Prêmio Pictet, o Prêmio Deutsche Börse de Fotografia, uma bolsa Guggenheim, uma bolsa da Fundação Shifting, a bolsa Poynter de Jornalismo da Yale, o Prêmio da Bienal B3 de Frankfurt, uma bolsa do Fundo de Produção de Arte, uma bolsa do Centro Pulitzer de Cobertura de Crises, além da bolsa Leonore Annenberg. É Membro Honorário da Sociedade Real de Fotografia, e representou a Irlanda na 55a Bienal de Arte de Veneza. O artista tem seis livros publicados. Sua última obra, The Castle, lançada pela MACK, foi apontada pela New York Times Magazine como um dos dez melhores fotolivros de 2018. Mosse tem mestrado em Fotografia pela Universidade de Yale, especialização em Belas Artes pela Goldsmiths, Londres, mestrado pelo Consórcio de Londres, e um bacharelado com distinção em Literatura Inglesa pelo King’s College de Londres.

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